quinta-feira, novembro 26, 2009

Tarcísio Trindade ou a cultura e a modéstia de mãos dadas - Artur Anselmo

TARCÍSIO TRINDADE
OU A CULTURA E A MODÉSTIA DE MÃOS DADAS

TEVE TARCÍSIO TRINDADE A SORTE de nascer e crescer entre antiguidades. Na Alcobaça dos anos 40 e 50 do século XX, a loja dos pais (António e Alice) guardava o ambiente típico do comércio europeu desenvolvido à sombra dos grandes conventos e abadias: mercadoria seleccionada a pensar nos turistas, tanto mais que a vila beneditina era então ponto de paragem quase obrigatória para quem viajava de carro entre Lisboa e Porto. Cerâmica em profusão, mobiliário, artesanato, livros antigos, estampas, peças de colecção, pergaminhos iluminados, objectos de “Art and Vertu”, pinturas, esculturas e desenhos, relógios, tapetes orientais, arte sacra e arte africana, “snuff boxes”, filatelia, loiça chinesa, armaria, mapas, postais, havia muito por onde escolher. Com uma nota curiosa: cada objecto, na sua riqueza ou na sua modéstia, era exposto no lugar mais adequado.
Este cuidado com a apresentação da mercadoria é, sem dúvida, hábito familiar inveterado, de que facilmente se apercebe quem entra na lisboeta Livraria Alfarrabista da Rua do Alecrim, onde
Tarcísio Trindade se instalou na década de 70: todos os objectos em exposição, depois de limpos e devolvidos à sua frescura original, são arrumados, como manda a melhor tradição do display comercial, da maneira mais conveniente a um exame dos seus traços fundamentais. Nada de atropelos, nada de misturas ao arrepio da própria natureza das coisas, nada de barafundas: cada objecto integrado no ambiente do interior da loja, como se, mesmo antes de mudar de mãos, estivesse já a viver uma vida autónoma. Aliás, a tradição familiar mantém-se também na actividade comercial de João e António, dois dos irmãos de Tarcísio Trindade que o seguiram na carreira de antiquário: as suas lojas, igualmente situadas na Rua do Alecrim, espelham essa preocupação de bom gosto disciplinado, que torna mais atraentes os objectos em exposição.
No caso particular do livreiro Tarcísio Trindade, o geometrismo do interior da loja reflecte o espírito alinhado do proprietário, e até a sua formação intelectual: sólida preparação clássica nas Humanidades, excelente aptidão cultural em áreas afins (música, artes plásticas, mobiliário, coleccionismo de alta curiosidade), domínio absoluto da técnica tipográfica, iconográfica e litográfica. Sobre tudo isto, um pendor natural para a análise psicológica, para a convivialidade e para a empatia com os seus clientes. Alguns destes prezam atentamente as notas manuscritas que o lápis n.º 1 de Tarcísio escreve no verso do anterrosto dos livros que tem à venda: lembro, ao acaso, as que lhe vi lançar em exemplares de obras de Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, Frei Bernardo de Brito (tanto o historiador da Monarquia Lusitana como o suposto autor da Sílvia de Lisardo), e bem assim em edições raras da Marília de Dirceu, d’O Crime do Padre Amaro ou das Horas de Luta, sem esquecer o primeiro livro impresso no Brasil, de que localizou uma variante datada de ... 1247, em vez de 1747.
Desde a época em que Tarcísio Trindade frequentava o Direito e a Poesia, o pai António deu-se conta de que o filho tinha um jeito especial para o comércio de antiguidades, e particularmente para os livros e papéis antigos, fossem os alcobacenses (de que, entretanto, começara a formar uma colecção de qualidade insuperável), fossem os clássicos portugueses e espanhóis, a par de pontos fortes da bibliofilia internacional: a Brasiliana, a Judaica, a Orientalia, a Americana Vetustissima, a Inquisição, o Sigilismo, etc. Assim, quando, um dia, Tarcísio lhe apareceu encartado de viaturas automóveis, logo surgiu, pronta, a autorização de que o filho se metesse a caminho das minas ibéricas, então ainda bem recheadas do que restava dos opulentos espólios dos conventos nacionalizados pelo liberalismo, das casas abatidas pela reforma vincular, das bibliotecas dos barões luso-brasileiros que os seus herdeiros analfabetos deixavam apodrecer. Eram os tempos em que Carranca Redondo, de trincha em punho, coloria as bermas das estradas portuguesas de publicidade ao Licor Beirão: tempos duros para a classe média agrícola de Portugal e mais ainda para todas as franjas sociais da Espanha. Como estranhar, pois, que mercadoria biblíaca de todo o tipo e feitio afluísse ao mercado de colportage? Não era verdade que, em Roma, coração da cultura europeia, se vendiam incunábulos nos passeios das ruas, a seguir à guerra de 39-45? Em Espanha, principalmente, a oferta era tanta que, não raro, o jovem
livreiro português via-se obrigado a restringir as compras ao volume da mala do carro.
Os clientes de Tarcísio Trindade conhecem-no, hoje, como um reputado bibliólogo (sem dúvida, um dos mais cultos e mais esclarecidos do mercado português), mas nem todos saberão que os primeiros passos da sua carreira comercial foram dados em torno da pintura, da arte sacra e do mobiliário. De terra em terra, comendo aqui, dormindo acolá, sem eira nem beira – como o Carranca do Licor Beirão –, o jovem Tarcísio mergulhava nas profundezas do património cultural
ibérico e, de malas aviadas, regressava a Alcobaça com a sensação de ter aprendido sempre um pouco mais. Por vezes, durante as viagens, só chegava a tomar conhecimento da mercadoria no quarto da pensão em que se hospedava, como sucedeu em 1965, quando, desfolhando uma miscelânea de incunábulos italianos e ibéricos, se lhe deparou um exemplar do mais antigo livro impresso na língua portuguesa: o Tratado de Confissom, executado em Chaves, por um tipógrafo anónimo, em 1489.
Perguntando um dia a Tarcísio Trindade qual a zona do país onde encontrara os testemunhos
mais surpreendentes do património bibliográfico, respondeu-me, sem hesitar, que essa lhe parecia ser a região de Lamego e de Tarouca. Mas não deixou de salientar a estupenda qualidade dos livros de algumas bibliotecas particulares da velha Lisboa (Madragoa, Bairro Alto, Alfama, Castelo, Mouraria) e do Alentejo, sem esquecer a biblioteca dos familiares de Pedro Ivo, nos arredores do Porto, os magníficos fundos do livreiro Francisco Moreira Sénior, na Amadora, ou, entre tantos outros espólios, o do marechal Carmona e o do doutor Júlio Dantas.
Já contei algures a história de uma biblioteca defendida por espessa cortina de teias de aranha, que Tarcísio Trindade teve o gosto de ressuscitar, em Alfama, de uma divisão palaciana onde ninguém entrava há dois séculos. Lembro-me do espanto com que ouvi da sua boca a descrição das preciosidades que os aranhiços souberam manter incólumes graças ao manto branco tecido à volta das estantes. E, no que toca aos numerosíssimos clientes que com ele privaram, como esquecer aquele gerente bancário de Leiria, possuidor de todos os primeiros livros de Miguel Torga com dedicatórias do autor, que, estando de candeias às avessas com o seu ex-amigo, decidiu passar esses livros preciosos para mãos estranhas?
Gostaria ainda de aludir a um traço do carácter de Tarcísio Trindade que sempre me fascinou: a sua natural modéstia perante o pedantismo de alguns clientes. Quando um destes, dos tais que “bebem do fino”, tenta impressioná-lo com torrentes de informação bibliográfica que Tarcísio está farto de conhecer de cor e salteado, não se julgue o livreiro capaz de repetir o dito do rei D. João Carlos de Espanha (“Por que no te callas?”). Nem pensar nisso! Pelo contrário, fixando bem nos olhos o finório, deixa cair simplesmente este comentário:
– Muito interessante o que me está a dizer, muito interessante...
Artur Anselmo

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